segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Falta de demarcação das terras indígenas gera crimes e violência

A questão fundiária está intimamente ligada à violência e ao uso de drogas nas aldeias indígenas cearenses

Na aldeia dos Pitaguarys, em Pacatuba e Maracanaú, crianças e adolescentes participam de projetos de prevenção ao uso de drogas e álcool. O objetivo do grupo é aumentar a autoestima e repassar um pouco da história da etnia fotos waleska santiago

"Constituem crimes contra os índios e a cultura indígena: propiciar, por qualquer meio, a aquisição, o uso e a disseminação de bebidas alcoólicas, nos grupos tribais e/ou entre índios não integrados. Pena - detenção de seis meses a dois anos". O trecho faz parte do artigo 58 do Estatuto do Índio, assegurado desde 19 de dezembro de 1973. Contudo, a legislação não é respeitada na maioria das aldeias indígenas do Ceará e, por conta disso, alguns povos, como os Jenipapos-Kanindés, de Aquiraz, e Pitaguarys, de Pacatuba e Maracanaú, foram obrigados a fechar o acesso de suas aldeias para evitar conflitos e crimes.

Segundo a advogada Aline Furtado, integrante da equipe do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos da Arquidiocese de Fortaleza, que presta assessoria jurídica aos povos Tapebas, Pitaguarys e Jenipapos-Kanindés, a violência nas terras indígenas do Ceará é recorrente e tem relação forte com a questão fundiária, ainda longe de ser solucionada no Estado.

"A violência e o consumo de bebida alcoólica e outras drogas nas aldeias estão intimamente ligados à questão da terra. Os não-índios não respeitam a posse da terra pelos indígenas", pontua a advogada.

No Ceará, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), relativos ao Censo 2010, existem 19.336 índios, divididos em 14 etnias. Destes, 12.598 estão na área urbana e 6.738 na área rural. Porém, somente o povo Tremembé do Córrego João Pereira, de Acaraú e Itarema, tem sua terra homologada. "Os índios só passam a ter direito de fato às terras quando são homologadas pelo Ministério Público como áreas indígenas", explica.

Sem homologação, algumas etnias lutam como podem para manter a integridade física dos seus membros, de suas propriedades e protegê-los da violência.

No sábado (11), o povo Jenipapo-Kanindé fez uma "corrente humana" para impedir o acesso de não-índios às terras da Lagoa da Encantada, em Aquiraz. De acordo com a cacique Juliana Alves, a ação será feita aos fins de semana para coibir o uso de drogas, de bebidas alcoólicas e crimes na aldeia.

O alcoolismo gera problemas familiares e de saúde em muitos indígenas FOTO: WALESKA SANTIAGO
A atitude radical foi tomada após o assassinato de um morador da comunidade, no último dia 6, que teria sido motivado pelo uso de drogas. "Nós fechamos a entrada, mas estamos recebendo ameaças até de morte", alerta a cacique.

A advogada do CPDH disse que essa não é a primeira denúncia desse tipo que a instituição recebe. "As belezas naturais das aldeias indígenas atraem pessoas que querem fazer uso da área como ponto turístico, levando bebidas e alimentos. Porém, quem decide pelo livre acesso é o indígena", esclarece.

Aline Furtado também chama a atenção para a ação recente, feita pelos índios Pitaguarys, que permaneceram acampados por quase cinco meses, impedindo o acesso das comunidades do entorno ao açude da aldeia, cujo acesso hoje está impedido por uma corrente, em Maracanaú.

Já em Caucaia, especialmente entre os Tapeba que vivem na comunidade da Ponte, próximo ao Rio Ceará, o problema são os crimes. "Há pouco tempo, vivenciamos um clima muito tenso naquela região porque as casas estavam sendo assaltadas. Para proteger as suas propriedades, alguns indígenas foram presos, por estarem portando armas sem autorização", afirma.

Segurança

Quanto à segurança, Aline Furtado diz que, pelo fato de as terras ainda não terem sido demarcadas, ainda não há consenso sobre qual polícia deve atuar no local. "Se as terras fossem homologadas, só a Polícia Federal poderia ter acesso. Algumas vezes, precisamos de policiamento e ninguém quer nos atender".

De acordo com o assessor de imprensa da Polícia Militar do Ceará, coronel Albano, a corporação atua nas áreas indígenas sempre que existe alguma ocorrência, seja lesão corporal, homicídio ou qualquer outro crime. "Nós atendemos como qualquer outra comunidade", explica.

Dados

De acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai), não existem dados sobre a situação de consumo de álcool e drogas por índios no Brasil. A Secretaria ainda esclarece que o Distrito Especial Indígena (DSEI) Ceará realiza ações de promoção de saúde, prevenção e redução de danos para o uso de álcool e outras drogas na atenção primária.

Também segundo a Sesai, em 2011, as ações foram reforçadas em todo o País, com a contratação de cerca de 40 psicólogos para atuação na saúde mental, sendo dois responsáveis pelo Ceará. Ações são realizadas a partir de uma adequação às especificidades culturais das etnias, com a participação das comunidades, buscando articulação com a educação, esporte e assistência social. Já os pacientes indígenas que precisam de atenção especializada são encaminhados aos equipamentos de saúde mental municipais ou estaduais.
Combate às drogas é feito de forma diferente pelas etnias

Grupo Iandé Meme Maranongara, composto por crianças e adolescentes indígenas Pitaguarys, atua na prevenção ao uso de drogas ilícitas e também de bebidas alcoólicas na comunidade FOTO: WALESKA SANTIAGO
O apoio de outras entidades, como Organizações Não-Governamentais e prefeituras dos municípios, faz toda a diferença no combate ao alcoolismo e ao uso de drogas entre os indígenas no Ceará, principalmente no que diz respeito aos povos que vivem em áreas próximas à Capital cearense, na Região Metropolitana de Fortaleza.

A equipe de reportagem do Diário do Nordeste visitou duas comunidades indígenas: os Tapeba da Lagoa II, que residem em Caucaia, e os Pitaguary, que vivem na zona rural do município de Maracanaú.

De acordo com o facilitador de artes indígenas Carlos Guedes, índio Pitaguary que desenvolve projeto com crianças e adolescentes na região há mais de dez anos, a saída encontrada por essa etnia é a prevenção.

"Não estamos livres das drogas, mas procuramos conscientizar essas crianças de que não se deve usá-las", explica.

Carlos Guedes coordena o grupo "Iandé Meme Maranongara", que, em tupi, significa "Somos todos parentes", composto por 28 crianças e adolescentes de idades variadas, que vão de sete a 13 anos e meio.

Os beneficiados participam dos encontros do grupo semanalmente e recebem lanche fornecido pela prefeitura de Maracanaú. O projeto ainda tem parceria com várias instituições privadas, como colégios particulares, que oferecem bolsas de estudo para os integrantes do grupo. "Procuramos fortalecer a autoestima deles para que quando eles chegarem ao mercado de trabalho, não terem tantos problemas ao se assumirem como índios, como a discriminação", diz.

Através do projeto, vários jovens estão matriculados em cursos técnicos e de nível superior e outros já até conseguiram sua vaga no primeiro emprego. "Temos uma ex-aluna que é gerente de loja em uma rede de farmácias e outro que está fazendo faculdade de Contabilidade", comemora o facilitador de artes indígenas, Carlos Guedes.

Entre as atividades desenvolvidas pelo grupo, está a dança do Toré e outras apresentações tradicionais. O figurino, confeccionado em palha de carnaúba e penas de aves, é feito por Carlos Guedes e sua esposa, Ana Lúcia Silva Duarte, índia Kanindé. "Nós fazemos apresentações em escolas, instituições públicas e privadas e, inclusive, já fomos até para a Itália, mostrar a cultura dos índios Pitaguarys", conta.

Sobre casos de alcoolismo e uso de drogas ilícitas dentro da aldeia, Carlos Guedes diz não ter conhecimento. "Nós tínhamos muitos problemas quando o acesso ao açude era permitido a todos, porque não-índios usavam drogas e bebidas por lá e sempre tinha confusão. Mas agora está tudo bem mais calmo", relata.

Falta de apoio

Em Caucaia, a realidade do povo Tapeba é bem diferente. Apesar de cada comunidade integrante da aldeia contar com um grupo cultural, composto de crianças e adolescentes, a falta de apoio de entidades não governamentais e também do poder público ajudam a aumentar as estatísticas de alcoolismo, uso de drogas ilícitas e até de assassinatos dentro da aldeia.

Segundo a agente de saúde indígena Iracema Matos, índia Tapeba que atua nas comunidades da etnia há cerca de 15 anos, o alcoolismo é um problema que atinge muitas famílias.

"O índio tem o costume de usar bebida alcoólica em seus rituais. Só que alguns começaram a substituir pela cachaça e se viciaram. O mocororó (bebida feita de caju, utilizada nos rituais do Ceará) é muito forte e não se pode exagerar nas doses", afirma. Iracema Matos e a também agente de saúde indígena Sílvia Nascimento participaram, no ano passado, de um curso oferecido pelo Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai), de facilitador de Terapias Comunitárias, em Porto Seguro, na Bahia.

Desde então, as duas realizam entre os Tapebas encontros mensais, abertos a toda a população indígena da aldeia, para que exponham as angústias. Porém, os problemas gerados pelo alcoolismo estão sempre presentes. "A violência causada pelo uso de álcool é muito citada pelos participantes", relata Iracema.

Além da bebida alcoólica, o crack também já faz suas vítimas na aldeia. "Tenho um familiar que mora aqui, é viciado e não quer se tratar. Ele começou com maconha, trazida por pessoas de fora e ele agora é dependente da ´pedra maldita´, o que destruiu a família, porque separou da mulher e tem quatro filhos pequenos", conta Sílvia Nascimento.

Iracema Matos dá assistência a uma índia, também mãe de quatro filhos pequenos, dependente de crack. "Ela me contou que começou a usar com as pessoas da família, dentro da aldeia. Depois que conversei com ela, orientando que poderia perder a guarda dos filhos por causa do vício, ela parou e está há quatro meses sem usar".

Para tratar dependentes químicos, entre os Tapebas, a única opção é encaminhar para o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) do município de Caucaia. "Não temos convênio com nenhuma clínica de tratamento. Lutamos contra as drogas aqui praticamente sozinhas", desabafa Iracema Matos.

Apesar de os números do IBGE apontarem que 52% dos indígenas cearenses não possuem rendimentos, as duas agentes de saúde afirmam que entre os dependentes atendidos pela Terapia Comunitária, a maioria trabalha. "Praticamente todos os que temos notícia que usam droga ou álcool têm emprego e assim sustentam o vício", revelam.

Para aumentar a renda em casa, o autônomo Francisco (nome fictício) decidiu diminuir o uso de bebida alcoólica. "Bebia nas minhas folgas, dia sim, dia não, e isso estava me deixando cansado. Só bebo agora nos fins de semana e já comecei a economizar. Quero deixar de vez", confidencia Francisco.
Políticas públicas ainda são insuficientes

"Não existe uma tendência natural do índio para se tornar alcoólatra ou dependente químico". A afirmação é do antropólogo e professor do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Gerson Augusto Oliveira Júnior.

Segundo o antropólogo, a dependência de drogas lícitas e ilícitas é um problema que diz respeito à sociedade como um todo. "A destruição das referências aproxima o homem do vício e as drogas, hoje, afetam todos os segmentos da sociedade", frisa.

Para Gerson Oliveira Júnior, deveriam ser criadas políticas públicas para combater essas práticas. "No fim do século XIX e início do século XX, a sociedade americana era considerada alcoólatra. Porém, as autoridades se preocuparam em combater o vício com leis rigorosas que ainda hoje perduram", lembra.

A historiadora Ana Lúcia Tófoli também ressalta que a associação dos indígenas ao consumo de álcool e drogas contribui para uma visão estigmatizada que se construiu em torno das populações indígenas no Ceará.

"Sem dúvida, este é um tema complexo que envolve questões ligadas à saúde, segurança pública e políticas indigenistas mais eficientes, sobre os quais carecem de mais estudos qualificados em nosso Estado", afirma a historiadora.

Ana Lúcia ainda alerta sobre o fato de alguns dos povos indígenas estarem muito próximos à Capital cearense, o que contribui para o agravamento do quadro de violência. "É importante elucidar que alguns povos, como Tapeba, Pitaguary e Jenipapo-Kanindé encontram-se dentro ou muito próximos da Região Metropolitana de Fortaleza, nas imediações de indústrias e rodovias. Portanto, sujeitos aos impactos inerentes a qualquer grande cidade brasileira: violência urbana, tráfico e consumo de drogas", afirma.

Além disso, de acordo com a historiadora, a situação se torna mais grave, devido à não demarcação da maioria das terras. "Mesmo as que estão demarcadas, ainda não foram desintrusadas (retirada e indenização de pessoas não indígenas), dificultando a restrição da entrada de pessoas estranhas", destaca.

Identidade

Já o impacto do reconhecimento da identidade dos indígenas pelas comunidades do entorno pode ter várias facetas. "Isso pode variar bastante, pois ´a comunidade do entorno´ pode ser desde industriais até quem compra terrenos em loteamentos irregulares, voltados à população de baixa renda", esclarece.

Ana Lúcia chama a atenção para quem faz uso das áreas indígenas para "turismo". "As pessoas que procuram esses espaços para o lazer, muitas vezes, o fazem associado ao consumo de álcool e drogas. Via de regra, não estabelecem relações respeitosas com as populações nativas e desconsideram ou desconhecem os limites das terras".


KELLY GARCIA
REPÓRTER


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